“Mas se alguém agir premeditadamente contra o seu próximo, matando-o à traição, tirá-lo-ás do meu altar, para que morra. O que ferir a seu pai, ou a sua mãe, certamente será morto. E quem raptar um homem, e o vender, ou for achado na sua mão, certamente será morto.” (Êx 21.14-16)
No relativismo moral em que vivemos, o homem é caça, e refém da sua fraqueza e transigência. O homem ao julgar-se evoluir, apenas revela-se ainda mais débil do que já foi um dia. Estamos rodeados por governos fracos e inoperantes, famílias frágeis e desagregadas, vizinhança fugidia no individualismo medroso de sua própria omissão. O homem é um par de pernas ágeis, ainda que trôpegas, corredias ao esconderijo da covardia. E o troféu ganho pode ser a morte imediata, ou a impunidade, seguida de morte. Entre bandidos e mocinhos, ninguém se salva. Todos são culpados: os que matam, e os que se deixam morrer. Não há inocente, ainda que todos sejam vítimas. Todos são criminosos, mesmo que somente uma minoria seja condenada. A sociedade agoniza, como um doente terminal… Já se ouvem os últimos suspiros… mesmo que a esperança venha em minúsculas cápsulas de açúcar… Fatalismo? Realidade? Delírio?
Olhe ao redor. Abra os olhos, as narinas, os ouvidos. Veja. Cheire. Ouça. Ainda que Deus tenha criado um mundo maravilhoso, ordenado, funcional e aprazível, os resultados da “obra humana” encontram-se espalhados como vermes no monturo: feiúra, caos, desconforto. A Queda do homem proporcionou o colapso do mundo. O pecado foi e é o propulsor para o que vemos e não suportamos ver, para o que cheiramos e não suportamos cheirar, para o que ouvimos e não suportamos escutar, para o que não tocamos e suportamos não tocar. A humanidade decaí, minuto a minuto, morinbunda, sujeitando-se à sua inevitável impiedade. Os jornais estampam a nossa vergonha. Publicam a nossa sordidez. Dissecam a nossa pobridão. Os corpos há muito estão despojados. A alma, cativa. Prazerosos, entregues ao algoz, pelejamos pela morte, como se viver fosse martírio.
Pais descuidados, filhos rebeldes, mestres inescrupulosos, alunos indolentes, maridos e esposas infíeis, sexo leviano, contratos inexequíveis, governos polutos… a refletir o que há de mais marcante na natureza humana: o ódio a Deus.
Não se engane. A idéia que você tem de Deus pode ser qualquer coisa, menos Ele. O que foi-lhe dito, pode trazer-lhe algum alívio, temporário e fracionado, pode trazer-lhe até mesmo uma espécie de conforto, mas ao confrontar-se com a verdade divina, descrita e pormenorizada na Bíblia, o que você sente? Desdém? Ira? Aversão? Abandona-a completamente? Ou como num self-service, colhe apenas e tão somente aquilo que não fere a sua consciência? Será possível agradá-lO sem obedecê-lO? E honrá-lO sem segui-lO? E glorificá-lO sem nos negar?
“Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me” (Mt 16.24).
A maioria das pessoas, ao ler este versículo, vê-o como um alívio para os seus problemas. Já ouvi muitas interpretações, e quase todas nos dizem para levar a nossa cruz e seguir ao Senhor, do jeito e como der. Quase todos se esquecem de que, não é possível seguir ao Senhor se não “renunciar-se a sim mesmo”. Em Mc 8.34 e Lc 9.23, lemos: “negue-se a sim mesmo”. E as palavras negar ou renunciar têm o mesmo significado. Não é uma negação simbólica, alegórica, irreal. Antes, é a recusa efetiva, é negar a nossa natureza pecaminosa, caída e depravada.
Você pode perguntar: “O que isso tem a ver com a sua exposição inicial?”. Respondo: “Tudo!”. O fato do homem encontrar-se em um beco sem saída, como o cão a caçar o próprio rabo, é que não há nem nunca haverá solução para ele e a humanidade em si mesmos. Enquanto iludirmo-nos de que podemos (mesmo que seja num futuro longinquo, fictício) consertar os erros criados por nós e nossos semelhantes; enquanto nos apegarmos a idéias utópicas de que o homem é bom, e basta um esforço para encontrar essa bondade nele, e de que é capaz de dividi-la com o próximo, a sociedade e o mundo (mesmo que não saiba onde ela está, e mesmo que defina sempre o próximo como ele próprio); enquanto continuarmos olhando para nós com autoindulgência e comiseração, e nos fazermos de pobres-coitados, de injustiçados, de vítimas oprimidas pelo sistema (seja lá o que isso representa); enquanto não olharmos para nós mesmos, não com os olhos encobertos pela dissimulação, pelo engano, mas olharmos para o que Deus nos revela sobre nós, estaremos irremediavelmente perdidos, obliterados pela cegueira.
É tempo de ver. E não de camuflar. É tempo de agir. Não como um piqueteiro inconsequente atirando pedras nos “fura-greve”. Não como alguém que vê somente o erro alheio. Como alguém que tem salvoconduto para a acusação. Deixar de olhar para a própria iniquidade, faz-nos odiosos diante de Deus. E os outros homens ver-nos-ão apenas como mais um inimigo, o qual se deve destruir (a destruição não somente física, mas psicológica, emocional, financeira…).
No tempo em que o temor a Deus está perdido, onde o homem relativiza tudo, onde ele mesmo não se julga culpado por nada, onde os outros são solidários em meus crimes apenas para que os seus também sejam absolvidos, onde “as verdades” são sofismas que nos levam à perdição, o homem precisa encarar o fato do que é: o próprio mal.
Estigmatizamos o diabo, e ele tem a sua culpa. Blasfemamos contra Deus, o que é abominável. Julgamos interiormente o próximo, ainda que não o façamos exteriormente, por vergonha de nós mesmos. Somos incapazes do auto-juízo, ainda que sejamos julgados, mais cedo ou mais tarde por Deus. “E, como aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo” (Hb 9.27).
E o amor de Cristo, que nos constrange (2Co 5.14), é o único capaz de nos afastar de nós mesmos e da nossa natureza, e do mal que habita em nós. E de nos tornar possíveis para o próximo, para o mundo, para nós. Sem Cristo, somos incapazes de amar, da mesma forma que a areia jamais amará a pedra. Ao contrário, se O conhecemos, estamos reconciliados com Deus, e seremos cheios da Sua plenitude (Ef 3.19), e a vida se abrirá para nós, e sepultaremos, definitivamente, a morte. “Em verdade, em verdade vos digo que, se alguém guardar a minha palavra, nunca verá a morte” (Jo 8.51).
Quanto ao homem natural, irreconciliável, rebelde, malévolo, resta-lhe a punição, a fim de se resguardar a vida, de tão alto valor, mas tão aviltada na atualidade. E que a sociedade, como remediadora (e não mediadora), corrija o mal praticado, e não seja cúmplice dos nossos crimes.
Fonte: Kálamos