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Dupla Predestinação

dupla-predestinacao-o-barro-decaido-e-a-arbitrariedade-de-DeusA partir do livro Eleitos de Deus, de R. C. Sproul, farei algumas considerações sobre a sua abordagem relacionada à dupla predestinação, o barro “decaído” e a arbitrariedade de Deus. Boa parte desses argumentos podem ser lidos nos meus comentários ao livro, disponíveis aqui.

Ressalto ainda que o meu intento não é o de polemizar pelo gosto da polêmica, mas revelar os meus pensamentos e fazer com que tanto eu como o leitor pensemos a partir do próprio texto bíblico. Não estou a sugerir nenhuma “saída” das Escrituras, nem uma tentativa estúpida de explicar algo inexplicável. Ao meu ver, o que tem feito os crentes permanecerem vulneráveis ao mundo e a si mesmos (em suas pressuposições) é exatamente o medo de ver na Bíblia aquilo que ali está revelado. Sem fazer-me dono da verdade ou especulador, nem exaustivo no que me proponho: uma reflexão a partir de considerações escriturísticas; e que pode levar muitos ao estudo sério de algumas questões que nem mesmo cogitamos pensar. O que acabará por nos tornar em replicantes de um esquema intruso à Bíblia, reverberando o deleite que o homem tem de ouvir sua própria voz. Então, sem mais delongas, mãos-à-obra!

Na questão da dupla predestinação, ainda que Sproul tente amenizar a eleição dos réprobos, ao dizer simplesmente que Deus escolheu os eleitos e deixou de lado ou à própria sorte os réprobos, não neutraliza a ideia do favor divino, da Sua escolha para a salvação dos eleitos; e o desfavor, mas ainda assim uma escolha, para com os ímpios.

Da mesma forma, dizer que Deus não endurece efetivamente o coração ímpio, mas retira a restrição do pecado sobre eles, deixando-os livres para pecar, é muito simplória e faz o malabarista derrubar todos os pratos no chão e estatelar-se sobre eles, além de não haver respaldo bíblico para essa conjectura.

Usar termos como “endurecimento passivo”, “entregá-los ao pecado”, “decreto positivo e negativo”, “destinação não simultânea”, etc, não exclui de Deus o desejo de que seus corações sejam endurecidos, os pecadores se voltem mais e mais ao pecado, e de que destinando alguns para a salvação, estará destinando os demais para a condenação. É fato que Deus não os quis salvar; é fato que Ele quis condená-los. Então, por que a necessidade de se tentar “aliviar” Deus quando Ele claramente diz o que fez e porquê fez? Não seria uma forma de subestimá-lo, e de até mesmo considerá-lo imperfeito, necessitando que o adequemos aos nossos defeitos para assegurar-lhe a perfeição? Isso cheira mal, algo muito próximo da rebeldia ou, na melhor das hipóteses, ignorância disfarçada de piedade. Em muitos casos é não querer aceitá-lo como é; em outros é a incapacidade de vê-lo como se revelou a Si mesmo.

Sproul chegou ao ponto de utilizar a passagem de Ex 7.2-5 (quando Deus afirmou a Moíses que endureceria o coração do Faraó) como um exemplo de endurecimento passivo, onde Deus não interviu diretamente no coração do Faraó, mas ao remover a sua restrição sobre ele, deixou que “as inclinações malignas de Faraó fizessem o restante” [1]. Ao que pergunto: se isso não é o mais escancarado malabarismo argumentativo a fim de tirar de Deus o poder de mover a vontade do Faraó a fim de que se cumprissem exatamente os Seus desígnios, o que mais pode ser? De certa forma, não passa de uma tentativa ilusória para transformar o irreal em verdade através de hábeis jogos semânticos.

Passiva ou ativamente, o Faraó não cumpriu o decreto divino? Tal qual ele foi estabelecido na eternidade? E, ainda que passivamente (especulativo), estaria-se a dizer que Deus obteve o resultado desejado sem querer produzi-lo? E se Ele não quis produzi-lo, quem o produziu? Nós? Há uma nítida inversão de papéis e de valores; sempre como uma justificativa para eximi-lo de suposta culpa, o que redundará em uma tentativa, mesmo inconsciente, de desprezá-lo e a Sua santidade, sabedoria e perfeição.

Da mesma forma, ao referir-se a Rm 9, Sproul diz: “Soa como se Deus estivesse ativamente fazendo pessoas ser pecadoras. Mas isso não é requerido pelo texto… veremos que o barro com o qual o oleiro trabalha é barro ‘decaído’. Um pouco de barro recebe misericórdia para tornar-se vaso de honra. Essa misericórdia pressupõe um vaso que já está culpado. Da mesma maneira, Deus precisa ‘tolerar’ os vasos de ira, próprios para a destruição, pois eles são vasos de ira, culpados” [2].

Não sei quanto a você, mas me parece outro contorcionismo desnecessário para não concluir o que o texto bíblico evidentemente afirma: Deus é quem FAZ os vasos de honra e os vasos de ira, lançando “as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou” (v.23); assim como a “sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para a perdição” (v.22).

Quem preparou? Quem destinou? Quem é o oleiro? Ou seja, quem fez os vasos destinando-os a ser o que são? Se não foi Deus, quem foi? Outro deus? Satanás? O homem? Mas se mesmo o mal, e apenas o mal e o pecado, não foi criado e ordenado à existência pelo Senhor, Ele não é soberano, e estamos de alguma forma enganados ou sendo enganados. Se como a Bíblia assegura que não há outro deus além do Senhor, e de que Ele é o criador de todas as coisas, por que ainda resistimos? Por que não nos sujeitamos às evidências internas das Escrituras? Certamente porque os nossos conceitos e argumentos não se encontram em unidade e harmonia com essas manifestações certeiras; os quais penetram sorrateiramente pela porta dos fundos, como se fizessem parte da revelação proposicional quando não passam de parasitas a provocar a verdade, no exercício de induzir o crente a uma aventura desastrosa, a culminar numa imagem distorcida de Deus.

O barro não existia previamente antes de Deus fazê-lo existir. O barro “decaído” não decaiu alheio à vontade de Deus, à sua revelia, por vontade própria. O barro “decaído” não foi autocriado, ou criado por outra “força”. O barro “decaído” surgiu pelo poder e vontade de Deus, e apenas por Ele poderia existir. O mesmo poder que destinou alguns para a glória e outros para a perdição. Ou seria possível ao homem escolher a forma como Deus o faria? E de como seria? Por exemplo, a cor dos olhos, cabelos ou pele? E o que dizer de coisas como o estado pecaminoso e o redentivo? Afinal, qual poder temos sobre nós mesmos? E a história? E a eternidade?

Fico com a impressão de que o autor quer ao mesmo tempo dizer e não dizer o que diz. E suas atenuações acabam por enfraquecer e confundir o conceito de soberania, predestinação e eleição divinas.

Isso é manipulação teológica, com todo o respeito e admiração que o Dr. Sproul merece. Bastaria ater-se ao texto bíblico, que é claro e límpido como água (especialmente os dois textos citados), sem a preocupação de imputar a Deus qualquer injustiça, pois, o menor pensamento de que isso seja possível somente poderá vir de uma mente doentia e caída; de uma mente não regenerada e carente da misericórdia divina. Nesses casos, vale a mesma resposta dada por Paulo: “Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim?” (Rm 9.20).

Outra questão é a definição de arbitrário. Ele afirmou que Deus não é arbitrário, porque “por si só, ser arbitrário é fazer alguma coisa por nenhuma razão” [3]. Bem, acho que esse conceito do autor, demonstra o seu nível de excentricidade, ou seria arbitrariedade?

A palavra arbitrário designa alguém que decide como árbitro, que não é regulado por leis, mas só depende da sua vontade. Nesse sentido, Deus é completamente arbitrário. Há algo igual ou superior a Ele, ao qual esteja condicionado? Deus faz exatamente tudo aquilo que quer, como quer e da maneira que quer, segundo a Sua perfeição, santidade e justiça. E quem somos nós para questioná-lo? Ou para moldá-lo a um padrão humano?

Não nascemos por nossa vontade, nem escolhemos o país, os pais, sexo ou nível de inteligência que gostaríamos de ter. Nascemos pecadores sem desejar sê-lo; somos eleitos sem querer sê-lo; e muitos irão para o inferno sem querer ir. Essas coisas todas aconteceram e acontecerão à nossa revelia, pela arbitrária vontade divina. Então, considero Deus arbitrário no sentido de que tudo no universo acontecerá segundo o seu arbítrio, sem nenhuma consulta prévia, sem nem mesmo Ele se preocupar se Suas decisões me agradarão ou não. E, por quê? Porque Ele é santo, justo, perfeito, sábio, Todo-Poderoso. E porque somos pecadores, injustos, imperfeitos e tolos, criaturas metidas a besta, julgando ter algum poder quando não temos nada, e o pouco que temos (o que é muito para a nossa condição) provém dEle, e é por Ele, para a Sua glória.

Descrever a vontade divina como não-imperativa, não-absoluta, em que o governo de Deus não depende exclusivamente de Si, nem é independente do universo governado é professar a maior heresia que o homem é capaz de produzir. Numa tentativa tola de diminuí-lo aos nossos olhos. Portanto, concluo que Deus é arbitrário, e não há como não ser. Em qualquer situação que se vá explicar a soberania divina, não há como não ligá-la à arbitrariedade. Senão não estaríamos falando de Deus, mas de deus, algo diminutivo, depreciativo, frágil como nós.

Nos aspectos citados, a despeito de muita coisa valorosa e pautada biblicamente que o Dr. Sproul diz e escreve, não posso concordar com suas afirmações. Elas me parecem com o marido desesperado, que ao encontrar a esposa em adultério no sofá da casa, joga fora o sofá.

Notas:

[1] Eleitos de Deus – R. C. Sproul – Editora Cultura Cristã – página 109.
[2] Idem – página 114.
[3] Ibidem – página 116.

Fonte: Kálamos